30.6.06

O Código de Produção, a 1ª Emenda e os criadores de Exploitation (1ªparte)

No início dos anos trinta do séc XX os escândalos empilhavam-se pelas colinas de Hollywood. Havia várias questões de natureza moral a ser levantadas contra muitas das principais e mais populares estrelas de cinema dessa era, entre as quais Charlie Chaplin, Clara Bow, Errol Flyn, Jean Harlow e Fatty Arbuckle, chegando algumas destas personalidades a ser levadas à barra dos Tribunais. Havia indecências para todos os gostos: sexuais, políticas, homicidas, etc.. E Hollywood começava a receber o impacto da resposta hostil perpetrada pelo seu público: a indústria do cinema era vista como moralmente falida, ateia, e, de uma forma mais genérica, como o tipo de malta com quem não se quereria partilhar um banco na igreja.

Tudo isso era basicamente verdade.

Mas essa era a época da proibição, sendo comum a possibilidade de controlar legalmente as questões morais. Por forma a escapar à eventualidade cada vez mais provável de ver os seus conteúdos ser objecto de censura à luz da lei, Hollywood faz a fuga para a frente e, por acordo dos grandes estúdios, começa a fazer auto-regulação da sua própria produção. Tal levou à criação do Código de Produção de 1934 (também conhecido como Código Hayes) pela Motion Pictures Producers and Distributors Association (actualmente chamada Motion Pictures Association of América), levando qualquer filme a ser lançado por um estúdio membro a passar pela fiscalização à luz de uma lista de merceeiro de bem feitoria moral.

O objectivo do Código de Produção era então o de garantir que o filme em causa não “baixasse/diminuísse os padrões morais” de quem ao mesmo assistia. Com tal meta presente, ficavam proibidas: profanidades, actos sexuais, paixões ostensivas, infidelidades matrimoniais, sugestões de fornicação, determinados actos criminosos, violência, etc.. Foi esta a era em que no cinema todos os quartos dos casais mostravam camas gémeas separadas e em que os actores e actrizes tinham sempre que manter pelo menos um dos pés no chão. Quer dizer, pelo menos era assim para os principais e maiores estúdios de cinema (que eram quase todos, não existindo grandes possibilidades de sobrevivência de estúdios independentes).

Ainda hoje seria assim, eventualmente, caso os grandes estúdios mantivessem o poder que à altura possuíam. Mas a realidade é que o perderam…
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Em meados dos anos 40, estando o chamado Studio System no auge, os grandes estúdios controlavam praticamente todos os aspectos da indústria americana do cinema. Para além das realizarem as habituais produções de elevado orçamento, realizavam também os filmes baratos para preencher as segundas partes das "apresentações duplas" – chamados “filmes B” ou filmes “série B”. Estes filmes eram projectados em salas da propriedade dos estúdios, pela América fora. As salas que não eram propriedade dos estúdios eram forçadas a assinar contratos de exclusividade, sendo essa a única forma de garantir que lhes eram disponibilizados grandes filmes, mais lucrativos, por esses estúdios.

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Esse Studio System fazia a vida muito difícil ao criador independente. Uma pessoa que conseguisse ultrapassar os obstáculos à produção de um filme, dificilmente conseguiria salas dispostas a projectá-lo. Sem ser projectado, o filme não dava o necessário retorno pecuniário. Para além de alguns poucos, velhos e tenazes estúdios – como os Monogram, os Republic e os United Artists (estes com o poder das estrelas que os integravam) – as companhias independentes estavam em vias de extinção.
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Até que, em 1949, o Supremo Tribunal americano decretou que os grandes estúdios se encontravam numa situação de monopólio, ao serem proprietários e controlarem ambas a produção e a exibição dos filmes. Esta decisão forçou os estúdios a desinvestir na propriedade e controlo das salas. Ao deixarem de poder ditar os filmes escolhidos para exibição, os estúdios alteraram a sua estratégia – uma vez em concorrência directa pelas exibições dos mesmos, os estúdios aumentaram a produção de filmes de elevado orçamento, desistindo dos “série B”.

Tal abandono abriu a porta ao criador independente. Uma das maiores vantagens de ser independente dos grandes estúdios era não estar limitado pelas premissas lavradas no Código de Produção de 1934. Eram dessa forma livres para fazer os filmes acerca do que quer que lhes apetecesse… ou que se atrevessem. Mas mesmo assim havia um risco envolvido, pois teriam ainda que ter em consideração a receptibilidade por parte do público e leis locais ou regionais de obscenidade a contornar.

Em 1952 também isso mudou. Mais uma vez, o Supremo Tribunal americano reconheceu legalmente o cinema como uma extensão da “liberdade de expressão”, protegendo-o de qualquer tipo de responsabilidade criminal ao abrigo da 1ª Emenda.

Nesse instante, as represas foram abertas e os criadores de filmes exploitation inundaram a América do cinema.
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- Adaptado de um artigo da autoria de Bob Bankard

22.6.06

HERSCHELL GORDON LEWIS – o “Padrinho do Gore”



Este norte-americano natural da Pensilvânia, com 77 anos de idade, é hoje em dia, e vem-no sendo desde meados dos anos 70, uma das mais respeitadas autoridades mundiais do Marketing directo e da publicidade, com mais de 15 livros editados internacionalmente.

No entanto, algumas pessoas conhecem-no melhor pelo seu papel de guru e pela sua ilustre carreira por entre os titãs do drive-in e do grindhouse.

Tendo-se limitado ao cargo de produtor no seu primeiro filme (The Prime Time – 1960), assume praticamente em todos os filmes em que posteriormente interveio o papel de realizador.
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Em 1961, com Living Venus (obra baseada na vida de Hugh Hefner e nos modestos inícios da Playboy) inicia a sua colaboração com o produtor David F. Friedman, colaboração essa que viria a tornar-se mítica.

Nos restantes primeiros anos dessa mesma década de 60, ambos concretizaram várias longas-metragens de características “sexualmente explorativas” (sexploitation), desde logo apresentando o cunho e a abordagem com que para sempre se relacionariam com o cinema, critério fundamental das suas obras: os filmes teriam como único objectivo o lucro, de preferência avultado.

Quando o mercado da nudez começa a perder vigor, Lewis e Friedman têm um papel preponderante ao serem os grandes pioneiros a penetrar o território inexplorado da violência explícita graficamente, do sangue a rodos, enfim, do gore, com o seminal Blood Feast (1963).
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Este filme alteraria para sempre os géneros, designadamente o de horror, revelando-se um imediato e estrondoso sucesso de bilheteiras que, em alguns drive-ins, chegou a permanecer em projecção durante mais de 20 anos, desbravando o carniceiro trilho que futuros filmes como Texas Chainsaw Massacre, Hallowen e Friday the 13th viriam a percorrer.
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Two Thousand Maniacs! (1964) e Color Me Blood Red (1965) foram as carnificinas que se seguiram, bem como os últimos filmes em que a dupla Lewis/Friedman colaborou entre si. Enquanto Friedman regressou à produção de sexploitation, Lewis seguiu o seu caminho sanguinário continuando a produzir filmes gore até 1972, ano em que lançou The Gore-Gore Girls.

Durante aquele período (65-72) o trabalho de Lewis foi beber a uma miríade de temas: delinquência juvenil (Just For The Hell Of It – 1968), troca de parceiros (Suburban Roulette – 1968), babes motoqueiras (She-Devils On Wheels - 1968), corrupção da indústria musical (Blast-Off Girls - 1967), controlo de natalidade (The Girl, The Body And The Pill - 1967), etc, sempre forçando aquilo que eram à altura os limites do decoro, do aceitável e do bom gosto (o grande John Waters assume declaradamente a sua admiração por H. G. Lewis e a inspiração que o seu trabalho lhe proporcionou).

E como numa personagem deste calibre não poderiam faltar os paradoxos, realizou ainda dois filmes para crianças (Jimmy The Boy Wonder – 1966 e The Magic Land of Mother Goose – 1967).

Para finalizar deixo algumas citações de H. G. Lewis, retiradas de entrevistas, que no seu pragmatismo acabam por dizer mais acerca do homem do que muito que se poderia ainda escrever:
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- Não considero que ter um filme classificado como bizarro seja um insulto. Se um crítico me oferece tal comentário eu agradeço-lhe por ele.

- Acho que o fascínio pelo sangue é algo profundamente intrínseco à mente humana e uma das vantagens desses filmes [de violência explícita/gore] é proporcionarem uma descarga passiva.

- Muitos consideram o “Laranja Mecânica” um filme pomposo e obscuro; eu não… e adoro a música de Beethoven.
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“- Suspeito de todos os realizadores que se vêm a si próprios como artistas e autores.

- Vejo o cinema como um negócio e tenho pena de qualquer um que o olhe como uma forma de arte, gastando dinheiro baseado nessa filosofia imatura.

- A arte está nos olhos de quem a vê.
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e um episódio:

Numa conferência sobre cinema, das muitas em que hoje ainda os veteranos Friedman e Lewis participam, um membro do público, na parte em que é permitido à audiência interpelar os oradores, questionou este último sobre se ele “se via a si próprio como um autor”. A resposta de Lewis foi lacónica:
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"-Mas você já viu algum dos meus filmes!?
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8.6.06

BLOOD FEAST - E a América pariu o Gore

Cumummente considerado o primeiro filme gore de sempre, teve a sua estreia em 1963 e foi realizado por Herschell Gordon Lewis como a 1ª parte de uma triologia de sangue, completada pelos 2000 Maniacs (a banda veio ao filme buscar o nome) e Colour Me Blood Red.
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Foi capaz de transformar o orçamento dispendido de 24.500 dólares numa facturação de 4.000.000 dólares só nos EUA (mais de 160 vezes o valor investido), o que só por si dá uma boa ideia do sucesso que atingiu.

Mas convém não sermos enganados… O filme é tecnicamente muito mau.
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Não tem enredo nem estória, apenas uma série de acontecimentos que tentam estabelecer uma linha narrativa tão complexa quanto uma conta de somar e cujo principal objectivo é, mais do que justificar as cenas de derramamento de sangue, preencher o espaço entre elas.

O derramamento de sangue, esse, é que é a verdadeira essência e interesse do filme. Captado com as cores (essas sim magníficas) que se tornariam imagem de marca do autor/realizador, o filme apresenta uma sequência de cenas de violência graficamente explícita, algo que nunca antes havia sido visto no cinema e que incluía, entre outros sadismos, membros a serem amputados, cérebros e línguas a serem arrancados, etc, tudo bem regado com muito, muito sangue, bem encarnado.
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Por tal, este filme tornou-se um marco incontornável na história do cinema, tendo representado para a exibição da violência aquilo que mais tarde o Garganta Funda representou para o sexo, implicando o seu banimento na RFA e no Reino Unido (neste até 2001) e a actual classificação para maiores de 18 anos que lhe está associada num grande número de países.

A partir deste ponto nunca mais o cinema foi o mesmo: as agressões e o consequente sangue começaram a ver-se mais, principalmente em géneros como o de horror/terror, que até aí eram modestos no seu uso, preferindo a sugestão à exibição. Hoje em dia, a violência gráfica e o sangue fazem parte integrante de um vasto tipo de filmes, designadamente os blockbusters de acção.
Assim, o uso de imagens explícitas de violência é actualmente apenas uma ferramenta entre outras na construção de um filme, sendo o seu bom uso aceite como normal ou até essencial, permitindo a criação de cenas de grande intensidade e/ou divertimento.

E tirando isso?
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Tirando isso não resta grande coisa… Foi filmado em 9 (nove) dias e os actores são todos eles carentes do mínimo de credibilidade exigível e de quaisquer dotes interpretativos. Um deles, Scott Hall que faz o papel do polícia William Kerwin, era apresentador de circo e foi convencido pelo produtor David Friedman a aceitar esse papel na falta do actor previamente escolhido, poucos dias antes do início da rodagem. Verificando-se incapaz de interpretar e decorar deixas passa o filme a ler da palma da mão e a gritar bem alto (conforme foi instruído pelo produtor, que lhe terá dito que se não sabia representar, que gritasse).
A banda sonora, da inteira responsabilidade do realizador é lamentável; a câmara está quase permanentemente fixa, bem como os actores que deslocam tanto quanto peças de mobiliário pregadas ao chão; os cenários são paupérrimos...
...mas por isto mesmo é que o filme é tão singular, tão divertido e tão leve - em suma, tão entretenedor.
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A estória, bem… da estória já foi dito qualquer coisa, mas resta acrescentar que no filme a personagem principal é um caterer de origem egípcia que (ab)usa (de) uma encomenda para fornecer a paparoca para uma festa por forma a levar a cabo um ritual dedicado a uma deusa de nome Ishtar, tendo em vista ressuscitá-la.
Para tal necessita de carne de jovens mulheres, que começam a aparecer pela cidade assassinadas e sem partes do corpo. A polícia é chamada a intervir mas não consegue nem sequer aproximar-se do assassino. Entretanto a data para a festa e o associado ritual ocultista aproximam-se…
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Conclusão:

Este filme poderia ser, atento o conjunto das suas características, uma homenagem/paródia sanguinária ao trabalho do Ed. Wood Jr.… mas não é…

É sim um ligeiro e despretensioso pedaço de história de cinema, que proporciona quer ao apreciador, quer ao curioso interessado, um pouco mais de uma hora de diversão em que a ausência de qualidade geral é directamente proporcional à grandeza da relevância histórica.

1.6.06

A juvenilização da cultura americana: Drive-In's & Rock n' Roll

Existe por parte de algumas franjas da música popular, designadamente de alguns subgéneros do Rock n’ Roll de tradição blues, e dos seus apreciadores, uma fascinação pela iconografia típica do cinema que classicamente está associado às Grindhouses – nomeadamente de horror e exploitation – bem como uma recorrente citação de tais formatos cinematográficos.


Nos anos 50 a 60, os EUA eram um país de adolescentes, legado da 2ª Grande Guerra e da geração dos “Baby Boomers”. O número de jovens da classe etária dos 12 aos 18 anos era tão significativo que levou os especialistas a definir o conceito até então ignorado de Teenager, bem como a sociedade em geral a modificar-se no sentido de se adaptar a esta nova realidade demográfica.
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A Bomba Atómica, comummente considerada a realidade mais importante do séc. 20, tinha lançado sementes de mudança em todas as dimensões do quotidiano social americano. Do desenvolvimento científico que marginou a construção desta arma nasceu toda uma nova gama de materiais e soluções de engenharia que foram rapidamente transformados em novos objectos que, por sua vez, vieram catalizar de forma acelerante as necessidades de consumo dos cidadãos. Por outro lado, a detonação da mesma e a consciência colectiva do seu poder de destruição originaram um sentimento global de fragilidade da condição humana que favoreceu a implantação de uma mentalidade individualista e, acima de tudo, imediatista.
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Os espíritos mais livres do negócio da música e do cinema desde cedo souberam aproveitar todas estas alterações sociais, tendo posteriormente sido seguidos pelas poderosas instituições industriais das mesmas áreas.
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Sendo estes dois tipos de espectáculos muito queridos do novo e numeroso mercado adolescente, a oferta “deformou-se” de modo a adaptar-se a este novo público.
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Assim, fruto da adaptação dos operadores destes mercados às necessidades de consumo dos adolescentes, foi por esta altura que se tornaram populares dois fenómenos da cultura do séc. XX: o Rock n’ Roll e o Drive-In (nos Drive- In’s eram projectados os mesmos tipos de filmes que noutros locais e/ou mais tarde eram apresentados nas Grindhouses).
Ambas as artes se alimentaram reciprocamente, quer através da produção de filmes relacionados com temáticas Rock n’ Roll (filmes de gangs juvenis, de Hot-Rods, etc), quer através da promoção de estrelas Rock através do uso do grande ecrã (é o caso do Elvis, por exemplo).

Hoje em dia, os pais do Rock n’ Roll morreram e os Drive-Ins deram lugar aos multiplexes, mas restam ainda algumas bandas, descendentes daquele género musical, cuja iconografia é a do revivalismo dos anos 50 e 60 e cujo imaginário é o dos filmes clássicos de série-B (julgo que o melhor exemplo são os fabulosos The Cramps, que fazem um contínuo permanente discurso artístico de citação dos clássicos exploitation, seja no título dos álbuns, nos nomes das músicas, nas temáticas das letras ou nos vídeo-clips).

Por outro lado, ainda há realizadores que nos nossos dias, com enorme mestria, usam o Rock n’ Roll para colorir os seus filmes de tradição exploitation (é o caso do Tarantino – porque será que é sempre tão fácil dar este gajo como exemplo? – com a música do Dick Dale no Pulp Fiction ou do Alex de La Iglesia com a música dos Southern Culture on the Skids no Perdita Durango).